trocava ainda há dias umas palavras com o João Bacalhau, que entre linhas deixou escapar a ideia daquilo a que resolvi chamar (e aqui o paralelismo é propositado) de "crise de vocações".
dizia-me ele que é cada vez mais difícil encontrar na “prata da casa” gente para manter a Zero a funcionar em pleno, situação que, sabem os que andam nisto à mais tempo, é um fenómeno mais ou menos recente. ou seja, naquele instituto são cada vez menos os que olham para a rádio com… fome de fazer / curiosidade de saborear.
recordo-me do facilitismo das “piratas”, em que qualquer um “fazia rádio” para experimentar, porque era “cool”, ou apenas e só porque sim.
depois veio o tempo em que se complicavam as coisas como no antigamente (poderemos falar aqui de “ciclos”?), em que rígidos(?!) testes de admissão deixavam muitos apaixonados fora do “éter” (lembro-me o quão difícil foi para mim encontrar uma janela de oportunidade para voltar à rádio, depois de uns anos de interregno). era a voz, a técnica de leitura, e o infeliz mas não despiciendo “conheces aqui alguém?”.
nos dias de hoje, já se sabe, impera o reino da imagem. é a televisão, é o cinema, o design, a fotografia, o youtube.
(um exercício simples: no google, uma pesquisa pela palavra “radio” gera 900 milhões de entradas, enquanto que a palavra “image” admite qualquer coisa como 2 mil milhões de links).
perdeu-se algures nessa transição natural som > imagem o fascínio pelo primeiro.
ainda hoje estou para perceber porquê.
ligo a televisão, e inundo a sala de cor e forma, sorrisos e penteados, brilho.
pergunto-me: alguém repara no som da(s) voz(es)? tudo se parece diluir num único sentido, o da visão; esse berlinde reluzente, um autêntico e triste “abafador”.
mais alguém repara nisto?
quantas e quantas vezes sintonizo um documentário e esbarro com belíssimas imagens pintalgadas com vozes de “cana rachada”, textos mal lidos e entoações descabidas.
estou com os sentidos em curto-circuito?
na era da imagem, a rádio parece votada ao esquecimento pelas novas gerações, mais agarradas ao imediatismo da tv, ao gozo da playstation, ao flash das máquinas digitais de última geração, até ao mp3 “fácil” (isto dava outro postal), em suma, à demanda do “visível”...
não me espanta esta “crise de vocações”. o que verdadeiramente me aflige é o facto de a rádio de hoje não estar a conseguir (por não saber como) criar - produzir - os seus autores de amanhã.
(estes acabarão por migrar de outros meios, o que já acontece; ouvimos todos os dias na rádio figuras da televisão transformadas em supostas mais-valias apenas porque são… “conhecidas”; tantas vezes, revelam-se um desastre - noto que a migração em sentido contrário geralmente dá melhor resultado).
tenho para mim que a culpa (palavra forte, mas não me ocorre outra) é da própria rádio (isto dava outro postal). é uma questão estrutural, que vive/morre bem lá no fundo do conceito, no modelo autista do negócio, do lucro, do fácil, e na maior falácia de sempre impingida no conceito de comunicação, o célebre “produzimos/criamos aquilo que as pessoas querem ver e ouvir”.
espero que tudo não passe de uma moda, de uma fase má, escura de cega. valha-nos a história, que tem dado sinais de que sim, que estamos algures a meio de um ciclo, que se trata apenas mais uma... crise.
4 comentários:
Caro P. Esteves
Endereça dois problemas diferentes. A Zero não tem falta de pessoas para fazer programas. Tem falta de pessoas para manter a estrutura da rádio. São coisas muito diferentes.
caro(a) Kyriu,
o exemplo da Zero deve ser entendido precisamente como tal, apenas como um exemplo (ou um "gatilho") sobre um assunto mais vasto que as breves palavras trocadas com o João.
compreendo (e concordo) com a distinção que faz no seu comentário, mas permita-me o seguinte desafio: faça as contas ao número de programas que podem ser ouvidos em repetição na generalidade das rádios portuguesas (Zero incluída).
para ter um ideia, o "lado B" passa 3 (três) vezes ao longo da semana numa das rádios (houve tempos em que repetia QUATRO vezes), e duas nas restantes. se isto não é também para "encher"...
e ainda outro aspecto, a juntar (e para ajudar no debate) a este: acha que há "competição" nas rádios portuguesas? (no bom sentido, obviamente) - isto dava para outro postal.
receio bem que não. falta massa crítica, e cada vez há menos termo de comparação. em suma, há falta de gente.
Pedro,
julgo que não é falta de gente. Quem, de uma forma ou de outra, controla as rádios, simplesmente ... não quer lá gente. Que incomodo ter lá "gente". Então "massa crítica" ... nem falar !
:)
"competição" nas rádios... FM? então não há? claro que há. A competição que pode haver num universo de mentes fechadas :)
Mas isso não é de agora. E a questão da massa crítica é muito interessante. Porque é sempre uma massa em valores absolutos (isto é, a nível de dinâmica de grupo para as coisas se desencadearem ou se manterem a rolar) mas o tipo de pessoas (para essa massa) é uma percentagem relativa da população. 1% em França não é o mesmo que 1% em Portugal.
Mas sim, há um movimento para a imagem. Mais do que isso, há um movimento para a ausência de imaginação. A TV castra as ideias (enforma-as, no sentido do pão de forma), a rádio deixa respirar. Os livros e as fotos também. Os meios em que uma das dimensões está ausente, em suma. É um modelo simplista que vale o que vale enquanto metáfora.
Ainda a nível de FM há coisas interessantes no panorama português. Agora o que para uns é bom, para outros é lixo. E, infelizmente, a abertura de espírito para deixar existir coisas que detestamos para também termos o que amamos e os outros detestam é o que faz falta a muita gente também.
Um problema multidimensional, mas dize-lo é uma tirada à la Palisse ;)
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